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Casal Moderno (Completo)

Capítulo 1 – Na Biblioteca



Chega um homem, ofegante como se tivesse andado alguns quilômetros a pé:
- Essa biblioteca aluga filmes também? Sem querer parecer tonto, procurar filme em biblioteca, mas é que eu vi esse filme há algum tempo na casa de um amigo gringo e tá muito difícil de achar ele de novo.
- Olha, acho que aqui na biblioteca vai ser difícil. Pergunta pra bibliotecária.
                                As bochechas dele se pintam de vermelho:
- Você não é a bibliotecária? Que vergonha! Desculpa atrapalhar sua leitura.
- Imagina... Você tá suado. Veio a pé de algum lugar distante?
- Na verdade não. Ar-condicionado do carro estragou.
Mal ele sabia que as próximas palavras daquela bela e jovem mulher mudariam o rumo do seu dia:
                - Por curiosidade, qual filme está procurando?
- Ghost World.
                - Nossa! Esse filme é ótimo! É sério que você gosta desse filme? Eu tenho ele lá em casa. Quer uma cópia?
Diz ela, na inocência.
                - Vindo de uma estranha, seria difícil aceitar, mas de uma estranha como você... É difícil negar.
                - Como assim?
                - Você é muito simpática...
                                Um sorriso suave exala do rosto dela nesse momento. As bochechas se avermelham.
                - Obrigada. Amanhã passa aqui e eu te faço uma cópia do filme. Pode ficar com ela daí.
                - Parece ótimo. Mas antes: já é quase meio-dia, deixa eu te pagar um almoço em troca?
                                Diz ele, sem malícia.
                - Olha... Não me entenda mal, mas se isso foi “você dando em cima de mim”, deixa pra lá.
                - É só um almoço. Quero retribuir sua gentileza.

E logo eles estavam num fino restaurante. Fino e caro. Com coisas caras quisera ele impressionar, o tiro teria saído pela culatra. Por sorte, algumas cervejas fluíram o papo de tal modo que os transeuntes que olhavam achavam que se deparavam com um casal. Ela era uma pessoa assim: além. Conversava sobre tudo, opinava sobre tudo. Delicioso seria o termo mais apropriado para descrever algumas horas de conversa com ela. Além de tudo, era uma belíssima mulher, de 25 anos com cabelos castanhos e olhos cor de mel. Ele, com 44 anos, separado e sem filhos, era um respeitoso engenheiro, dono de uma grande empresa. Se por um lado era um grande empresário, por outro, socialmente era quase analfabeto: poucos amigos, poucos romances. Além disso, era um homem de estatura pouco avantajada, cabeça quase nua e, apesar de não obeso, não era dos mais esbeltos.

A essa altura o almoço durava já quase 2 horas. O assunto passeara do triste ao alegre, do doce ao severo. Muito se conversava, mas nada mais era tão interessante de se observar quanto o quanto os dois observavam e se divertiam com as vidas alheias. Um jogo de deduções tomava conta da mesa, até que ela pergunta:
                - O que você acha daquela menina?
                - Não sei. Quero saber agora sobre a menina que está na minha frente.
                                Nesse momento há uma pausa. Ela o olha com um olhar totalmente diferente de todos os outros que ela já havia demonstrado e diz, de forma meio rude, já indo embora:
                - Então, preciso ir. Tchau!


Capítulo 2 – De volta ao começo




Ficou por alguns minutos sozinho no restaurante, tentando entender o que acontecera. Pediu mais uma cerveja, e finalmente foi embora. Passou o dia intrigado sem saber se triste ou se feliz. No outro dia, fielmente, no mesmo horário combinado, apareceu à biblioteca. Uma onda de vergonha passou pela sua cabeça: ela não estava lá. Resolveu esperar. Esperou uns trinta minutos e quando ia embora, eis que chega ela, deslumbrante: cabelo molhado, uma camiseta meio rasgada (sem ser vulgar) e uma calça jeans. E ela então fala:
                - Oi, que bom ver você por aqui...
                - E aí? Como vão as coisas?
                - Vão bem. Nossa, acabei de lembrar, esqueci a cópia do seu filme.
                              Nesse momento há uma pausa e ele se sente impotente. Teria ela nem se lembrado dele?
                - Sem problemas, eu acho que um amigo meu tem. Já vou indo, prazer te conhecer.
                - Calma, você me pagou um almoço, não vou te deixar perder a viagem... Vamos lá em casa, eu te faço um café e te entrego a cópia. Eu saí correndo e esqueci de pegá-la.

E novamente os dois estavam juntos, só que agora num lar humilde e assistindo televisão, ainda de tubo. O assunto era tão envolvente que durante quase três horas, os dois sentados no sofá não conversaram sobre o tal filme, não tomaram café e muito menos assistiram televisão. Foi quando ele disse, nem se lembrando do tal filme:
                 - Então, tenho que ir...
                - E o filme? Vai deixar pra trás? Você não vai nem tomar o meu café? Eu faço o melhor café da redondeza. Mamãe ensinou.
E ele, apesar de já ter perdido a hora e precisar sair, não aguentou e esperou mais um pouco.
                - Eu tenho que ir... Mas vim aqui pra esse tal café e pelo filme, né?! Vou esperar um pouquinho então.
    Ela deixou o filme sendo copiado enquanto fazia o café. O café ficou pronto, eles beberam e ela:
                - Valeu a pena esperar, não?
                - É, que delícia de café... Mas agora preciso ir mesmo. Na verdade, já perdi a hora.
                - Hm, ok então. Agora: me dá seu braço e eu te dou o filme...
                - Pra que?
                - Apenas estenda o braço.
                         Ela escreve o telefone dela, usando batom no ante braço dele. Após isso, ela o abraça, como se os dois fossem amigos de longas datas e diz:
                - Tchau...
                                Nessa hora, os olhares se cruzam e os dois se encaram por quase um minuto. Ele diz:
                - Tchau!


Ele agora ia embora dirigindo um carro que passeava sobre as nuvens, apesar do ar-condicionado estragado. Chegou em casa, deitou e dormiu um sono que por muitos anos não teve. Mas o bom sono não durou toda a noite. Logo deduções estranhas apareceram sobre ela. Ele ficava tentando entendê-la: mas era impossível.


Capítulo 3 – Nem tudo são flores



Acordado, ele foi ao shopping. Como nunca antes, dessa vez ia lá simplesmente passear. Olhava as lojas e as pessoas fazendo sozinho, o jogo que aprendera com ela no dia do almoço. Olhava os casais e imaginava como seria ter ela ali ao seu lado. E foi numa dessas olhadas, que ele viu uma caixa de bombom e resolveu comprá-la.

No outro dia, fora para um bar, sozinho. Embebedou-se e contou para todos os presentes sobre aquela peculiar garota. Para uns, ele dizia ter se enamorado, para outros dizia ter se casado. Até contar vantagem sobre a “gata” que estava “namorando” ele contou. No fundo ele só queria escutar o que opiniões alheias e aleatórias achavam sobre a situação.

Uma semana se passou e nenhuma palavra mais fora trocada entre os dois. Ele ainda tinha aquela caixa de bombom, então ele pega o telefone e:

                - Vou ao cinema hoje. Vou ver o filme do Tarantino. É chato ir sozinho...
                - Coincidência! Vou assistir a esse filme hoje também. Estou indo as duas! Vem comigo.
                                Ele ficara muito animado...
                - Hm, pode ser mais tarde? Vou levar meu carro pra consertar o ar.
                - Eu vou na... (ela se interrompe). Ah, quer saber? Vamos as 5 então?
                - Ótimo, parece ótimo.



E os dois estavam prestes a se encontrar. Ele agora só precisava consertar o ar-condicionado do carro, que era consideravelmente modesto, devido o tamanho de sua fortuna.


                - E aí chefia, qual problema?
                - É o ar... Não liga.
                - Isso é simples, ele tá com mal contato.
                - Demora?
                - Nada. Enquanto isso dá uma olhada nessa gostosa que o outro patrão deixou o panfleto aqui.


Era o panfleto de uma prostituta. Era o panfleto dela. DELA. -“Eu sabia que tinha alguma coisa de errado. 25 anos e linda daquele jeito me dando mole, vadia!”. Enquanto comia os bombons que uma vez eram para ela, ele agora resolvera que iria ver o que aconteceria. O plano agora era perguntar quanto que tinha custado o “programa” no final do dia e mostrar o panfleto para ela. O plano era ferir o ego dela, do jeito que o dele estava ferido.




E eles foram para ao cinema. Conversaram banalidades no caminho, compraram pipoca e, a pedido dela, compartilharam uma Coca-Cola. Foi inusitadamente agradável a situação para ele. Mais inusitado ainda foi ver que durante o filme, ela se encostou em seu ombro. Além disso, ela o encarava com alguma frequência. Nesse momento, ele mantinha uma cara de desconfiado a todo o momento, e ela, agora, não entendia muito bem o que se passava.



Eles então saíram do cinema, intactos. Intactos até quando eles chegaram na casa dela, onde ela o abraçou e com um olhar tão severo, o induziu a beijá-la. E o beijo se estendeu para muito mais que beijo. E quando acabou, ela simplesmente se virou e não deu espaço para mais nada acontecer. Se virou e foi embora para sala, o enxotando sem palavras e sem despedida. Ele tinha ensaiado um: “e quanto é que custou, vadia?”, mas nem isso saiu. Nesse momento, a raiva era gigante, ele ia para o carro, mas impressionantemente, as únicas palavras que passavam pela cabeça dele eram uma mistura de sentimentos. As palavras eram: “Eu te amo, vadia!”. Sim... Apesar de tudo, se ela escutasse os pensamentos dele naquele momento, ainda iria dormir lembrando de um: “Eu te amo”. 


Capítulo 4 (Quebrando a Cara)






Ele dormiu. No outro dia passou a tarde afogado em projetos novos e trabalho. Era como se agora a nova meta da vida dele, fosse ser o homem mais rico do mundo. Mas isso era só o que ele fantasiava: ela tinha agora um cômodo dentro da mente dele e de lá, não saía nunca. Apesar disso, jurou nunca mais vê-la.

Foi ao supermercado no outro dia. Fez as compras, tudo corriqueiramente, mas na hora de pagar algo mexeu com ele: um casal trocava caricias, e decidiam o que comprar numa sintonia tão bela que ele não resistiu. Precisava vê-la. Ele precisava vê-la, mas não tinha nem ideia de como poderia aborda-la sem parecer um idiota. A magnifica ideia veio à cabeça: ele iria vê-la no ambiente de trabalho dela.

Ele voltou para casa e foi ao carro, em busca do panfleto dela (o de prostituta), para poder pegar o endereço; teve uma surpresa: o panfleto sumira de dentro do porta-luvas. Ele passou algum tempo pensando em como iria descobrir aonde encontra-la, já que ligar para ela, estava fora de cogitação. Era como se ele quisesse, causar nela o que ele sentiu: humilhação. O plano era fazer sexo com ela e perguntar o preço depois. Um clique nasceu na cabeça dele, a oficina, aonde ele primeiramente viu o panfleto.

Chegando na oficina, fingiu interesse pela prostituta de uma forma banal, como se fosse um homem qualquer em busca de uma “gostosa” que viu no cartaz. Perguntou para os rapazes se eles já haviam “consumido o produto”. A resposta foi um óbvio não. Disseram que ela era “coisa fina”, “carne cara”. Deram para ele outro panfleto dela, mas além de tudo alertaram outra peculiaridade:
- Se você sair com ela, aproveite, será a melhor noite da sua vida (como se ele já não soubesse). Mas aproveite bem, pois ela só atende o mesmo cliente uma única vez. Ao menos foi isso o que disse o rapaz que passou a noite com ela.

E cada vez ele ficava mais intrigado. Um cliente, uma vez na vida? Ela era intrigante demais para ser uma garota qualquer além de doce e inteligente demais para ser uma prostituta.

Ele foi para o bordel, com sede dessa vez de vingança. Chegando lá, não olhou para nada, já chamou o gerente e pediu: quero essa daqui (mostrando o panfleto). Surpreendido, foi lhe dito que ela não era mais prostituta fazia quase seis meses, mas que impressionantemente, ela havia passado lá no dia anterior e deixado uma carta para ser entregue para ele, com nome e tudo. A carta dizia:

“Minha mãe era americana. Foi estuprada. Me deixou aqui para adoção. Com 12 anos de idade fui adotada por um pedófilo. Nesse mesmo dia tive minha primeira relação sexual. Fugi de casa. As oportunidades para mim nunca foram fartas. Sexo nunca foi prazer, por isso nunca consegui me relacionar com alguém mais de uma vez. Na verdade, nunca me relacionei com alguém que não me pagasse por isso. Essas palavras não justificam meu passado, mas explicam, eu espero. Te peço perdão se te feri de alguma forma. Meu regime de prostituição era mais uma escravidão interna do que propriamente um ato profano.”

Ele ficou arrasado. Não sabia aonde colocar a cara. Simplesmente saiu entrou no carro e se pôs a chorar. Ele não conseguia fazer mais nada, teve que ir para casa e esperar a noite passar. Não conseguiu dormir.

Refletindo tardiamente, ele percebeu que o panfleto que não estava no carro, só poderia ter sido pego por ela, e ela então presumira tudo que acontecera. Agora estava tudo bagunçado. Não se sabia mais o que era orgânico e o que era calculado por ambas as partes. Ele não sabia mais o que sentia e não sabia o que ela estava fazendo: se era um jogo ou se era “pra valer”. Tudo virou uma salada de sentimentos. Apesar disso tudo, a parte dela que já morava dentro da cabeça dele dizia: me liga. Foi quando ele pegou o telefone e, decidiu ligar fingindo como se tudo fosse a primeira vez:
- Vou no cinema hoje. Vou ver o filme do Tarantino. É chato ir sozinho...
Ela deve ter demorado três segundos para responder, mas para ele, foram quase três horas.



Capítulo 5 (Orgulho Mal Compreendido)



                - Hoje não vai dar. Não me entenda mal, mas acho que preciso de um tempo sozinha.
                - Olha, depois de tanta coisa, ao menos uma conversa pessoalmente você me deve.
                - Não devo. Mas te magoei, vou te dar essa conversa por causa disso.

Ele veste a melhor camiseta do guarda-roupa, se perfuma como um lorde e vai. Chegando lá ele bate a porta e ela atende. Ele recebe um oi vergonhoso, sutil. Ela o convida para entrar e antes de qualquer palavra ela diz:
               
                - O que eu vivia antes com você, era um sonho. Eu imaginava como seria a minha vida sendo “garota certa”. Era isso que me motivava. Não tem nada de errado com você, mas sim com o que aconteceu: o sonho acabou. Eu não vou conseguir viver ao lado de alguém que imaginou um dia que eu pudesse ser tão baixa. Só isso.
                - Está tudo certo.
                                Diz ele seco, indo embora sem olhar para trás, mas com um aperto no coração imensurável.

No caminho de volta ele não suporta a pressão, para o carro num posto de conveniência e ali mesmo começa a tomar algumas cervejas. Ele volta para casa e retorna a sua rotina normal. No outro dia ele voltou ao mesmo shopping e ficou fazendo o jogo de adivinhações que ela havia ensinado para ele. Ele estava completamente apaixonado, e ele queria muito ter implorado o amor dela; não fora o ego dele que impedira, por incrível que pareça... Ela tinha uma personalidade tão única que para ele, implorar no momento parecia ser tolo, e só pioraria a situação.

Haviam se passado quatro dias desde o acontecimento e ele resolveu então que ia sair. Não tinha amigos para poder convidar; resolveu ir sozinho. Foi numa boate de meia idade dessa vez: se esbaldou. Pagou bebida para todo mundo, e saiu de lá com uma mulher. Trinta anos, nada que seja tão vistoso, mas era bonita. E os dois acabaram no apartamento dele. A noite foi ótima e a companhia era ótima, mas nada batia a dita cuja menina que era prostituta mas que passava o tempo na biblioteca.

A vida dele mudou. Agora ao invés de ficar em casa aos finais de semana, festejava como nunca. Até festa no apartamento, ele com quarenta e quatro anos, estava fazendo. Mas era inútil, já haviam se passado dois meses e a lembrança dela era muito forte. Ele resolveu que iria conversar com ela mais uma vez. Foi no shopping, comprou a mesma caixa de bombom que comeu sozinho na oficina, mas dessa vez não teriam ligações. Ele bateria à porta dela direto.

Novamente ele se trajou finamente, mas dessa vez, não como um lorde, mas como ele mesmo julgava ser bonito (apesar de saber do péssimo gosto para moda, ele decidiu que ela o veria como ELE, e não veria algo torto. Ele queria que ela visse o “cara do primeiro dia”). Ele pegou o carro, estacionou à porta da casa dela, tocou a campainha e quando ela atendeu, antes que ela abrisse a boca ele disse:
                - Olá. Você não sai da minha cabeça, sua vida é esculhambada, mas a minha também é. Nunca tive vida social que preste, nunca me dei bem com pessoas, passei meu tempo gerando números. Eu gerei tantos números até você vir e me mostrar o que é a vida. Eu só quero cuidar de você. E mais do que isso, eu preciso de você.
                                Ela começa a chorar nesse momento:
                - Chorei por dois meses depois daquele dia. Eu esperava que você ficasse ali e dissesse que o que eu disse sobre “agora que você sabe tudo acabou” era bobeira, me espantou você ter simplesmente saído. Você foi o primeiro homem a me tocar sem que eu estivesse encarnando uma meretriz.
                                Nesse momento ele abriu a boca para falar alguma coisa, mas antes que palavra alguma saísse, a língua dela já estava dentro da boca dele.

E pela primeira vez, ela se deitou duas vezes com o mesmo homem.

FIM

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8 comentários:

  1. nossa. Sem palavras! Tem continuação não??

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  2. Cadê a continuação? Excelente história. Parabéns

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  3. Esse é o final... Se continuarem pedindo por continuações, pode ser que saia uma nova série entre os dois. Mas peçam isso no facebook, para eu saber se têm muita gente querendo mesmo uma continuação!

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  4. Curtam a página no facebook. Afeto Cognitivo. Se você subir o scroll, ao lado superior direito tem um botão escrito Facebook que já redireciona na página.

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